14 de outubro de 2008

dois animais metafísicos

"(..) A primeira é a "estátua sensível" de Condillac. Descartes professou a doutrina das idéias inatas; Etienne Bonmot de Condillac, para refutá-lo, imaginou uma estátua de mármore, organizada e proporcionada como o corpo de um homem e habitada por uma alma que nunca houvesse percebido ou pensado. Condillac começa por conferir um único sentido à estátua: o olfativo, talvez o menos complexo de todos. Um cheiro de jasmim é o princípio da biografia da estátua; por um instante não haverá senão esse aroma no universo, que, um instante depois, será cheiro de rosa e, depois, de cravo. Se houver na consciência da estátua um único perfume, já teremos a atenção; se perdurar um perfume quando houver cessado o estímulo, teremos a memória; se uma impressão atual e uma do passado ocuparem a atenção da estátua, teremos a comparação; se a estátua perceber analogias e diferenças, teremos o juízo; se a comparação e o juízo voltarem a ocorrer, teremos a reflexão; se uma lembrança agradável for mais vívida que uma impressão desagradável, teremos a imaginação. Engendradas as faculdades do entendimento, as da vontade surgirão depois: amor e ódio (atração e aversão), esperança e medo. A consciência de ter atravessado muitos estados dará à estátua a noção abstrata de número; a de ser perfume de cravo e ter sido perfume de jasmim, a noção do eu. (..) "

Jorge Luis Borges

Um comentário:

Anônimo disse...

"Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. As pessoas argutas poderão discutir a propósito de ser ele realmente um lobo, de ter sido transformado, talvez antes de seu nascimento, de lobo em ser humano, ou de ter nascido homem, porém dotado de alma de lobo ou por ela dominado; ou, finalmente, indagar se essa crença de que ele era um lobo não passava de um produto de sua imaginação ou de um estado patológico. É inadmissível, por exemplo, que, em sua infância, fosse rebelde, desobediente e anárquico, o que teria levado seus educadores a tentar combater a fera que havia nele, dando ensejo assim a que se formasse em sua imaginação a idéia e a crença de que era, realmente, um animal selvagem, coberto apenas com um tênue verniz de civilização. A esse propósito poder-se-iam tecer longas considerações e até mesmo escrever livros; mas isso de nada valeria ao Lobo da Estepe, pois para ele era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior."

H. Hesse

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